Escrita de taberna com mão trémula de vinho. Viagem ao interior de um país de duques e cenas tristes. O tinto que se extingue no copo. As tabernas que fecham os olhos, tolhidas pela modernidade plastificada.
Texto Rui Pelejão Fotografias Margarida Dias e António Supico
É aqui. Cheguei. Cheira a vinho. Um bafo antigo, intemporal, ressequido, incrustado neste chão, nestas paredes, no mármore do balcão. Não há pipas de 50 litros a ornamentar a parede, nem serradura para aparar as bátegas de vinho transbordante em mãos de tremedeira delirus tremens. Não há sequer um papagaio a debitar vernáculo amestrado como havia nas velhas tabernas de Lisboa.
Mas não há que enganar. Cheguei finalmente a uma genuína taberna.
O balcão de mármore é altar que dá guarida à balança de ranger reumático e à telefonia Grundig, agora calada dos relatos longínquos do hóquei em patins, dos golos do Eusébio, do “E depois do adeus”…
Não é um tasco abastardado de casa de pasto, nem sequer uma tasquinha típica com acepipes e orelheira em salsa, ou o café central do emigrante com zumbido Sport TV, balcão-enlatado de alumínio com pelotões de fuziladores de minis. Não. É mesmo uma taberna à antiga portuguesa. Um retrato amarelecido do tempo em que os homens se acamaradavam ao balcão para beber vinho do pipo e petiscar pataniscas mata-borrão, fintando a solidão dos dias e vingando as filhas da putices com que a vida nos encorna. “Como é refrescante o relincho de um burro quando o aliviam de toda a carga.” Isso, e o estardalhaço folgazão dos homens na taberna.
Numa cadeira de praia listada de cores garridas, a velha vestida de preto apara umas vagens no avental e levanta os olhos de um azul límpido e desconfiado. Deixo a luz cálida de Maio pelas costas, com o aroma de giestas que perfumam as ruas graníticas de Alpedrinha e vestem as encostas da Serra da Gardunha de um manto amarelo bravio, a desafiar fogaréu de Verão.
Entro na penumbra fresca, no remanso da “Tasca da Ti Maria”. Mas não é uma tasca, não senhora, é uma taberna.
– Uma ginga, se fizer favor!
A velha levanta-se a custo com a curvatura da bengala a imitar a das costas cansadas, e passa para o seu púlpito de balcão.
- Com ou sem elas?
- Com.
- E a caneca de alumínio interrompe a sesta de lavatório, esvoaçando por cima do monte de latas de atum Tenório, das salsichas Nobre e das caixas de fósforos, para, num ritual basculante, mergulhar no boião baço do licor com a mão de camaroeiro experiente da Ti Maria a extrair a ginga com ela. Um gesto tão antigo como a própria taberna.
- Vai para 60 anos que tenho a taberna aberta. - E adoça-se-lhe o azul dos seus olhos onde a desconfiança se dilui.
Molho o bico na ginga. Docinha, boa para destemperar deste país amargoso.
Sento-me no mocho, apoiando o cotovelo firme na mesa trôpega de caruncho. Tiro o Moleskine e o lápis. É aqui sentado que vou fazer a reportagem de taberna, enviado-especial da A23 à “Tasca da Ti Maria” de Alpedrinha, a Sintra da Beira, onde se vende um litro de vinho a um euro. Reportagem sentado num mocho, em busca do povo das tabernas, enquanto vinhos finórios que ganham óscares-a-dias escorropicham no decantador de cristal conspurcado dos deputados da Nação que assinaram de cruz a “importação” do regulamento 852/2004 do Parlamento Europeu, que regula a higiene dos produtos alimentares. Os mesmos pintalegretes que do alto da sua indolente estupidez deram bacamarte e braço longo à ASAE, essa bófia sanitária que persegue o chouriço de sangue e a marmelada oferecida aos lares da terceira idade.
Um país que não cuida dos seus velhos e lhes confisca a marmelada preparada com amor filial, não é um país, é um sanatório.(...)
Mas não há que enganar. Cheguei finalmente a uma genuína taberna.
O balcão de mármore é altar que dá guarida à balança de ranger reumático e à telefonia Grundig, agora calada dos relatos longínquos do hóquei em patins, dos golos do Eusébio, do “E depois do adeus”…
Não é um tasco abastardado de casa de pasto, nem sequer uma tasquinha típica com acepipes e orelheira em salsa, ou o café central do emigrante com zumbido Sport TV, balcão-enlatado de alumínio com pelotões de fuziladores de minis. Não. É mesmo uma taberna à antiga portuguesa. Um retrato amarelecido do tempo em que os homens se acamaradavam ao balcão para beber vinho do pipo e petiscar pataniscas mata-borrão, fintando a solidão dos dias e vingando as filhas da putices com que a vida nos encorna. “Como é refrescante o relincho de um burro quando o aliviam de toda a carga.” Isso, e o estardalhaço folgazão dos homens na taberna.
Numa cadeira de praia listada de cores garridas, a velha vestida de preto apara umas vagens no avental e levanta os olhos de um azul límpido e desconfiado. Deixo a luz cálida de Maio pelas costas, com o aroma de giestas que perfumam as ruas graníticas de Alpedrinha e vestem as encostas da Serra da Gardunha de um manto amarelo bravio, a desafiar fogaréu de Verão.
Entro na penumbra fresca, no remanso da “Tasca da Ti Maria”. Mas não é uma tasca, não senhora, é uma taberna.
– Uma ginga, se fizer favor!
A velha levanta-se a custo com a curvatura da bengala a imitar a das costas cansadas, e passa para o seu púlpito de balcão.
- Com ou sem elas?
- Com.
- E a caneca de alumínio interrompe a sesta de lavatório, esvoaçando por cima do monte de latas de atum Tenório, das salsichas Nobre e das caixas de fósforos, para, num ritual basculante, mergulhar no boião baço do licor com a mão de camaroeiro experiente da Ti Maria a extrair a ginga com ela. Um gesto tão antigo como a própria taberna.
- Vai para 60 anos que tenho a taberna aberta. - E adoça-se-lhe o azul dos seus olhos onde a desconfiança se dilui.
Molho o bico na ginga. Docinha, boa para destemperar deste país amargoso.
Sento-me no mocho, apoiando o cotovelo firme na mesa trôpega de caruncho. Tiro o Moleskine e o lápis. É aqui sentado que vou fazer a reportagem de taberna, enviado-especial da A23 à “Tasca da Ti Maria” de Alpedrinha, a Sintra da Beira, onde se vende um litro de vinho a um euro. Reportagem sentado num mocho, em busca do povo das tabernas, enquanto vinhos finórios que ganham óscares-a-dias escorropicham no decantador de cristal conspurcado dos deputados da Nação que assinaram de cruz a “importação” do regulamento 852/2004 do Parlamento Europeu, que regula a higiene dos produtos alimentares. Os mesmos pintalegretes que do alto da sua indolente estupidez deram bacamarte e braço longo à ASAE, essa bófia sanitária que persegue o chouriço de sangue e a marmelada oferecida aos lares da terceira idade.
Um país que não cuida dos seus velhos e lhes confisca a marmelada preparada com amor filial, não é um país, é um sanatório.(...)
foto 1– Alpedrinha
A Europa de Copenhaga a Alpedrinha(...)
foto 2 Margarida Dias
Pobreza proibida(...)
foto 3 Margarida Dias
Dominó e vinho(...)
.Foto António Supico
Conversas na catedral(...)
«Está na hora! – diz a Ti Maria levantado o alguidar com as vagens.
Fecho o bloco com um estalido seco.
- E agora Ti Maria… vai fechar a taberna?
- A taberna fecha quando eu fechar os olhos.»
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