sexta-feira, novembro 27, 2009

Em 1989 uma banda de Aberdeen, Seattle, gravava com apenas 600 dólares o álbum de estreia: "Bleach". 20 anos depois esse disco é reeditado...

Uma anomalia: Kurt Cobain
por Vítor Belanciano

Em 1989 uma banda de Aberdeen, Seattle, gravava com apenas 600 dólares o álbum de estreia: "Bleach". 20 anos depois esse disco é reeditado. E sai em DVD o registo de um concerto, "Live at Reading", quando o mundo eram os Nirvana. A história deles e a nossa nunca foi a mesma.

Por falar em Kurt... Mais exactamente, Kurtz, o coronel renegado, interpretado por Marlon Brando no épico de Coppola "Apocalypse Now". O filme centra-se na missão liderada pelo capitão do exército americano Benjamin Willard (Martin Sheen), cujo objectivo é eliminar o enigmático Kurtz, que lidera, no interior da selva vietnamita, qual rei divino, uma milícia de dissidentes e nativos.

Porque é que o exército americano quer eliminar um dos seus? Porque Kurtz deixou de obedecer à linha de comando. Não porque tenha desistido da guerra ou deixado de acreditar nesses ideais. Pelo contrário: crê totalmente, mas por excesso. Sofre de sobre-identificação com a instituição militar. Foi ultrapassado pelos acontecimentos. Até à loucura. Transformou-se no desregramento a abater. Um incómodo.

Ele percebe-o. No final é Willard a matar Kurtz ou é Kurtz a preparar o terreno para que Willard o abata? A imolação de Kurtz, sequência que encerra o filme, é a tentativa de lidar com a desordem cosmológica. Um exaltado fotojornalista - Dennis Hopper - que Willard encontra na selva faz de arauto. É ele que nos diz sobre Kurtz: "The man is clear in his mind, but his soul is mad." Não poderíamos dizer o mesmo de Kurt Cobain?


O filme da sua vida foi outro, mas foi também o mesmo. Interpretou os princípios da contracultura, acreditou neles, excessivamente. Sofria de sobre-identificação com a ética punk-rock. Foi ultrapassado pelos factos. Via-se como criador alternativo mas os seus discos vendiam milhões. Em parte, por ele, música antes encarada como difícil foi cunhada e vendida às massas como "grunge".

A popularidade embaraçava-o. Queria fama, mas não estava preparado. Quem tinha 20 anos olhava-o como guia. Mas ele não queria ser guia. Sentia que estava tão perdido como os que queriam ser guiados. Nunca conciliou os seus princípios com o sucesso. O suicídio resolveu o impasse, antes que o rasto de integridade desaparecesse por inteiro.

20 anos depois, na altura em que se assinala a edição do primeiro álbum dos Nirvana, "Bleach", o mistério sobre Kurt e a sua banda mantém-se. Ficarão para sempre com o nome gravado na História do rock dos anos 90 - mesmo se parecem ter constituído uma anomalia.

Aquela voz, de onde vinha?

Nesse período, do ponto de vista criativo, as linguagens da música de dança é que faziam a revolução. Mas para a indústria elas não representavam nada. No mercado mais rentável do mundo, o americano, o rock dominou sempre. Os concertos eram lucrativos e o culto da personalidade suplantava o anonimato das electrónicas.

Quem tinha vivido os anos 60, 70 e 80 dizia que já não havia mais nada para inventar. Dos Velvet Underground aos Stooges, tudo parecia ter sido feito. Mas o rock, velha carcaça, recusava-se a morrer.


Kurt Cobain nasceu em 1967. Lia fanzines rock. Escutava Vaselines, Daniel Johnston, Raincoats, TV Personalities, Black Flag. Rock independente, cultivado em caves escuras. Regia-se pela ética punk-rock. Pertencia a uma elite: aqueles que se zangavam a sério contra os valores burgueses. Era contra o capitalismo, a favor do "faça-você-mesmo". Contra o espectáculo, pela anarquia. Pelo regresso da sinceridade, mesmo sabendo que a história do rock está repleta de traições.

O rock, para Kurt, eram canções cruas, o visual de todos os dias, lutar contra o estabelecido, convencer seguidores a recusar o sexismo, a homofobia, o novo-riquismo. As canções, virulentas, punham a nu a vaidade e a opulência da América, do Ocidente, do princípio dos anos 90. Tornavam visível a esclerose, a gordura. O capitalismo, dizia Kurt, era "a gula."

Anotava as suas reflexões num diário. Cresceu na década de 90, a primeira, depois da década de 40, que viu duas gerações distintas - pais e filhos - a gostarem da mesma música. O rock, os Beatles, os Stones, com os quais os pais também haviam crescido.



Mas Kurt tinha raiva da geração dos pais. A cólera tinha que explodir. Em 1987, os Nirvana. E ele, esperançado, anotava: "Vamos lançar o álbum às nossas custas. Achámos uma fábrica que prensará 1000 discos por 1600 dólares, o que faz com que tenhamos que vender apenas 250 discos para recuperar o nosso investimento."

Acabaria por ser a independente Sub Pop a editar o primeiro álbum, "Bleach", registado em apenas seis dias. Kurt tinha 22 anos. Não se saiu mal. 80 mil exemplares. Mais de 1,7 milhões de cópias vendidas até hoje. O maior sucesso de sempre da Sub Pop.

Os Nirvana tornam-se líderes dessa coisa chamada grunge. Em Seattle outras formações praticavam música semelhante (Melvins, Soundgarden, Pearl Jam, Screaming Trees, Alice In Chains), mistura de Neil Young punk e Black Sabbath pop, desordem, melodias perdidas por entre guitarras cerradas e, no caso dos Nirvana, aquela voz, passando da dor à raiva, do apaziguamento ao caos. De onde vinha? Entre as influências citava "os divórcios, as drogas, os efeitos sónicos."

O desgosto formava o gosto

Ao vivo os Nirvana ganhavam reputação de grupo incontrolável. Em 1991, o rock precisava de sangue novo. Em quem apostar? Havia os Pixies, mas Frank Black era anafado. Não parecia Jesus como Kurt. Dir-se-ia mais um simpático caixa de supermercado do que outra coisa. E os Sonic Youth? Muito artísticos, muito nova-iorquinos, veteranos.

Restavam os Nirvana. Restava injectar visibilidade e dólares no grunge de Seattle. E o negócio abateu-se sobre a cidade. Visualmente era Kurt quem sobressaía. Loiro, ar torturado, desleixado como um roqueiro que se preze.

E os Nirvana assinaram por uma multinacional.


Foram convidados a descer até Los Angeles para gravar o segundo álbum. Prudente, a Geffen prensou apenas 50 mil exemplares de "Nevermind". Foram vendidos mais de 10 milhões. Para quem tinha vivido a década de 80 foi a surpresa. O álbum transformava a impotência em energia, a inércia em dinamismo, mas ninguém acreditava que aquele som - descendente dos Husker Du, Dinosaur Jr ou Sonic Youth - teria hipóteses de seduzir. Seduziu.

Em parte, por um single, "Smells like teen spirit". Em 1991 ser jovem era aquela canção, aquela deflagração, rejeição de qualquer coisa inominável. O desgosto formava o gosto. Tornava-se êxito disforme, aberração dos tops habituados a acolher de braços abertos Vanilla Ice. As palavras eram confusas, mas tornava-se num hino de revolução adolescente, impulsionada por um vídeo sugerido por "Over The Edge", filme de Jonathan Kaplan, com Matt Dillon.

Mas de que espírito jovem falava Kurt nessa canção? Do punk-rock que queria acabar com a gula e o cinismo dos mais velhos? Ou do espírito dos adolescentes da América, dessa geração que obedeceu a Bush pai, adoptou valores reaccionários, correu aos cinemas para ver "Forrest Gump" ou às lojas de discos para comprar Bryan Adams?

Kurt horroriza-se com a debilidade dos seus pares. Com o estado do mundo. E com as suas próprias desventuras: porque é que se droga, arma zaragata, destrói hotéis como se fosse uma trivial celebridade rock? Porque é que se casa com uma estrela, Courtney Love, tão frágil como ele? Porque é que os dois adquirem uma casa como todos os casais conformistas que critica? Porque é que ele, no auge da glória, não pode, não consegue, mudar o estado das coisas?

Sim, tornara-se numa personalidade. A revista "Rolling Stone", outrora alternativa, agora símbolo do entretenimento, quer que ele pose para a capa. Ele não devia, escreve. A ética punk não lho permite. A ele, das "fanzines". Mas é estrela, a "Stone" é importante, tem que fazê-lo.
Para não passar por marioneta tem uma ideia: posa para a capa, mas de t-shirt, com a inscrição "corporate magazines still suck", forma de insultar a "Rolling Stone". É isso que pensa, mas a vida é mais complexa.

Ao aceitar essas condições a "Rolling Stone" dá provas de largueza de espírito. É admirada por isso. Kurt sofre. Pensava que se podia infiltrar no sistema para o fazer explodir, mas transforma-se no alibi do sistema, que o exibe: olhem para os Nirvana, indomáveis, rock com alarido, comprem os discos e estarão a comprar também uma atitude rebelde.

A partir de determinada altura percebe que os amantes de rock já não são aliados. Ele que se sentia diferente ao ouvir os Vaselines e que acreditava na atitude combativa, percebe que os dez milhões que o ouviam eram os mesmos que iriam ouvir, mais tarde, Limp Bizkit.

Não espanta que desconfiasse dos fãs de rock, sobretudo os da primeira geração, os renegados que, na sua visão, haviam traído ideais. "O leitor médio da ‘Rolling Stone' é um ex-hippie que virou hipócrita e que olha para o passado como sendo a época de ouro, mas absorveu o capitalismo com indulgência, moderação, numa palavra, acomodou-se." Porquê a animosidade contra os "hippies"? Não eram suficientemente radicais. Tinham-se vendido. Eram "yuppies".

Kurt e Eddie


Apesar de ser o número 1 mundial continuava um pequeno punk. No festival de Reading apresenta-se de bata e cadeira de rodas. Nos prémios MTV os Nirvana tocam uma canção chamada "Rape me". Kurt ainda acreditava. Mas intensificava-se a sensação que já não passava de um Dom Quixote a esbracejar no vazio.

Tenta curas de desintoxicação, com e sem Love. A 2 de Maio de 1993, uma "overdose" de heroína em Seattle. Prepara-se o sucessor de "Nevermind". Os Nirvana querem lançar um disco assumidamente difícil. Cobain deseja que tenha o título de "I hate myself and i want to die". Mas os imperativos do negócio falam mais alto. Chamar-se-á "In Utero" e trepará pelos tops. A 4 de Março de 1994, em digressão, mais uma "overdose", em Roma. Um mês depois, a 5 de Abril, suicídio. Ao lado do corpo: "É melhor apagar de uma vez que desaparecer aos poucos."

Tinha 27 anos. Infiltrou-se no sistema. Os Nirvana impuseram às massas a cólera face à gula. Para muitos, Kurt perdeu. Puxou de uma arma, mas apontou-a a si próprio. Para outros, não; foi grande. Esses normalmente tendem a compará-lo a Eddie Vedder, dos Pearl Jam, outro grupo seminal de Seattle, ainda activo. Faz sentido.

Enquanto Kurt sempre teve dificuldade em lidar com grandes audiências, e em palco quase não dizia nada, Eddie comporta-se como o irmão mais velho, aquele que se oferece para ser guia.

A voz de Kurt é coisa em bruto, expondo uma raiva incoerente, assente em letras pouco claras. Eddie conta histórias. As canções dos Nirvana são mais desafiantes, mas não oferecem calor. Quando muito são catárticas.



Eddie parece tentar chegar ao outro. Kurt quer que o deixem em paz. Aquilo que faz do primeiro um herói do rock - no sentido mais conservador do termo - é que é alguém que nunca desiste de lutar. "In Utero", o último grito dos Nirvana, é o oposto. É desistir, é o isolamento, o casulo onde Kurt se resguarda das contradições de ser um rebelde milionário.

Talvez Eddie seja um ser humano melhor. Mas segundo o mito romântico do criador, talvez Kurt seja melhor artista. Como o Kurtz de Brando: era lúcido. De uma lucidez disforme, incapaz de percepcionar a totalidade à sua volta. Ninguém se surpreendeu quando se suicidou. Mas mesmo assim a sua morte continua a inspirar as mais bizarras e diversas teorias conspirativas.

Quem matou Kurt Cobain? A resposta é óbvia. Kurt Cobain matou Kurt Cobain. Mas também foi vítima: vítima do mito de que para se ser autêntico, verdadeiro e comprometido, não se pode ser popular.

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