"Uns esquis de plástico e um garruço na cabeça" é a imagem que João Marques guarda do menino que aos três anos foi com os pais à estância de esqui de Grandvalira, em Andorra. "Lembro-me de querer fugir", recorda. Mas desde essa primeira experiência até se transformar num dos dois primeiros atletas portugueses a representar a Selecção Nacional de Esqui nos campeonatos mundiais de esqui alpino, que terminaram ontem em Garmisch-Partenkirshen, na Alemanha, passaram 15 anos e muitos sacrifícios. Nem João Marques, nem o veterano Jorge Gonçalves, de 42 anos, conseguiram qualificar-se, acabando por abandonar a competição.
Com o passar dos anos, João Marques ganhou o gosto pela velocidade em cima dos esquis. O facto de viver na Covilhã tornou-se uma vantagem geográfica para se ligar aos desportos de neve. Afinal é na serra da Estrela que existem as únicas pistas de neve no país. Foi ali que João Marques foi descoberto pela Federação de Desportos de Inverno de Portugal, no âmbito da iniciativa de caça-talentos jovens Brincar na Neve, lembra Pedro Farromba, presidente da federação.
Identificados os talentos, os jovens atletas são integrados nas respectivas classes: "Começam na classe de flocos de neve, a classe zero do esqui, para aprenderem a modalidade." E, gradualmente, vão subindo para outras classes. A dos infantes, dos juniores e dos seniores, onde podem participar em competições internacionais. "Sempre com enquadramento da federação", sublinha.
Foi assim que Sérgio Figueiredo, seleccionador nacional, que participa nesta caça de talentos mais jovens, descobriu João Marques, que foi integrado na classe dos infantes. "Vi nele algumas competências técnicas e vontade de evoluir", lembra.
Apesar de, na garagem de casa, ainda ter guardados os primeiros esquis com que se iniciou na competição, o tempo dos infantes ficou lá bem para trás. Hoje as viagens, competições e os longos períodos fora de casa são uma constante. A maior parte do treino é feito em estâncias europeias de esqui, entre Espanha e Áustria.
Pedro Farromba afirma que, apesar de a serra da Estrela, ser "o melhor que temos, fica muito aquém das necessidades para um atleta de alta competição de desportos de neve". "Não por falta de vontade, mas por falta de neve", diz.
Na serra da Estrela o tempo para a prática das modalidades de Inverno está centrado, em média, em quatro meses, entre Dezembro e Março. "E mesmo assim nem sempre com a quantidade de neve necessária. E competimos com atletas que vêm de países onde há dez meses de neve por ano", justifica Pedro Farromba.
Afiar e encerar arestasO último treino de João Marques, antes deste Campeonato do Mundo, foi feito na estância de La Molina, nos Pirenéus espanhóis, onde se encontrou com outros atletas, de outros países participantes. São comuns os estágios com a Federação Internacional de Esqui, onde marcam presença desportistas internacionais e alguns dos melhores treinadores do mundo.
"Acabamos por fazer amizades para a vida. Partilhamos o mesmo espaço durante meses, vivemos as mesmas frustrações e os mesmos medos. E apoiamo-nos nas conquistas dos nossos sucessos. Puxamos uns pelos outros. O esqui é uma disciplina individual no que toca a resultados, mas quando estamos juntos somos uma equipa", confidencia João Marques.
Chegar a estes campeonatos, onde João Marques e Jorge Gonçalves foram pioneiros, não é tarefa fácil para alguém que vem de um país sem tradição nos desportos de neve.
Se as maiores estrelas se preocupam só com a competição e a seguir vão para o hotel descansar, João Marques, depois de sair das pistas, ainda tem muito que fazer. "Tenho de preparar os meus próprios esquis. É um trabalho que demora mais de uma hora e que realizo normalmente depois de jantar." Há que afiar bem as arestas dos esquis, numa bancada própria, e saber escolher o ângulo das mesmas de acordo com o tipo de neve que se vai encontrar. "Um trabalho que por vezes provoca as primeiras lesões de um atleta: os cortes nas mãos. A aresta fica mesmo afiada, como uma lâmina", conta João Marques.
E depois das arestas afiadas é necessário limpar a cera já gasta dos esquis e escolher, entre várias hipóteses, a cera que se vai usar no dia seguinte. "Para cada temperatura de neve há uma cera certa, que é colocada com uma espécie de ferro de engomar a temperaturas que variam entre os cem e os 200 graus." A cera demora cerca de duas horas a secar nos esquis. "Gosto de fazer este trabalho, que serve também para me ajudar a descontrair antes das provas importantes. Quando estou concentrado a preparar os esquis, penso na pista e na forma como vou abordar cada obstáculo", confidencia.
Muitas vezes procura conselhos junto dos preparadores dos atletas que conseguem as melhores pontuações. "Já me ajudaram a escolher que tipo de cera usar, se devo ou não fazer alguma mistura de cera conforme a neve de que se esteja à espera para o dia seguinte... Quem anda nestes circuitos acaba por funcionar como uma família, até porque grande parte do ano passamo-lo com as pessoas das equipas." Mas também há quem não ajude em nada, admite.
Em Garmisch, a participação acabou por ficar aquém dos resultados desejados. No slalom, uma das disciplinas do esqui alpino, em que o atleta tem que passar entre vários pórticos, o objectivo era qualificar-se no último terço da tabela. Não conseguiu.
"A saída de pista, na segunda descida, deitou por terra essa qualificação. No primeiro sector fiz um bom tempo. Apostei tudo na segunda descida, mas saí de pista", disse ao P2, a partir da Alemanha, no final da prova. Já no slalom gigante, semelhante ao primeiro, mas que é uma prova contra-relógio, João qualificou-se na 122.ª posição, tendo ficado a um lugar de ser repescado para a prova principal.
Como consolo recorda as vozes de muitos espectadores que gritavam por Portugal durante as suas descidas. "Estivemos com muitos portugueses durante os dias de prova. Há muitos emigrantes em Garmisch", conta.
O próximo objectivo do atleta são os Jogos Olímpicos de Inverno, que terão lugar na cidade de Sochi na Rússia, em 2014.
Escola pela InternetChegar a uma prova mundial tem um preço alto: os amigos, as coisas que todos os rapazes de 18 anos querem fazer, e até a escola, ficam em segundo plano. "O João passa muito tempo sozinho em estâncias internacionais, em estágios e provas, o que lhe dá alguma vivência e experiência internacional que a maioria dos jovens da idade dele não têm. Queremos que no futuro ele sirva de exemplo para que outros miúdos sigam esta modalidade", revela Pedro Farromba.
Com estágios de três meses no início do período de Inverno, acaba por faltar às aulas. Falha que as novas tecnologias vieram colmatar. A escola onde estuda, na Covilhã, usa um software de apoio ao ensino. "Desta forma posso estar a treinar em Espanha e ir acompanhando a matéria. Tenho muito trabalho para conseguir levar as coisas pelo melhor caminho, mas há sempre coisas que ficam para trás. Acabei este ano por ter de ficar a fazer melhorias de notas a algumas disciplinas para entrar na universidade", conta.
João Marques mantém a cabeça centrada num futuro profissional paralelo: quer ser veterinário. E os sacrifícios, confessa, valem a pena: "Apesar das dificuldades, acabo por ter prazer no que faço."
O computador e a Internet ajudam na escola, mas não só. As amizades e o contacto com a família também se mantêm com o apoio das novas tecnologias. "Tenho um blogue (www.joaomarques.wordpress.com) e uma conta no Facebook, onde coloco informações sobre os meus treinos e que actualizo regularmente, quando estou em prova", diz. "E estes meios servem também para divulgar a minha imagem", acrescenta.
Obrigado a ter regras"Não posso dizer que leve uma vida normal, mas tento", revela. Quando está em casa, na Covilhã, levanta-se às oito horas para treinar, às dez vai para a escola, são 20 minutos a pé. "Esta opção pelo esqui obriga-me a ter regras. É difícil fazer uma vida igual à dos meus colegas. Chego ao fim do dia muito cansado. Acabo por conseguir ir ao cinema e, com algum esforço, estar com os amigos no café. Mas nunca por muito tempo", explica.
São os pais e a serra da Estrela os portos de abrigo do atleta de 18 anos. Confessa que fica mais confortável quando o pai pode acompanhá-lo numa competição. "O meu pai estava presente numa prova em que eu caí e lesionei-me, foi ele que me levou ao hospital. Sem dúvida que o apoio das pessoas de quem mais gostamos é importante. É como os esquis."
E os olhos brilham quando fala da serra da Estrela. É lá que se sente em casa. Conhece os cantos e recantos do parque natural e os vários locais que lhe servem para treinar. Além do esqui, João faz treinos de corrida, caminhada e BTT. No Inverno ou no Verão, os 88.291 hectares do parque natural, com pistas de manutenção e trilhos no meio da serra, servem de ginásio ao ar livre.
Já muitas vezes acabou por passar a noite no abrigo de madeira do Clube Nacional de Montanhismo, mesmo ali ao lado da pista de esqui - bem preparado para o receber, onde os 30ºC de temperatura o deixam dormir de t-shirt. Assim pode começar a treinar mais cedo. "Ainda não há ninguém nas pistas e eu já lá estou, pronto para o meu treino matinal.", congratula-se
O contacto com a natureza é uma das regalias que tira desta experiência: "Sendo o esqui uma modalidade ligada à natureza, faz mais sentido fazer a maior parte do treino ao ar livre. E com as diversas fontes de água que existem nestes parques, não é preciso andar carregado com água para me hidratar", observa.
É a serra que lhe serve de refúgio, quando a pressão da competição aperta. "Se toda a gente, quando está com problemas, desse um passeio pela serra da Estrela, não se vendiam tantos antidepressivos", conclui, de sorriso largo.