Não é por acaso que, nesta espécie de retrospectiva que tenho feito no Royal Cafe, só agora aborde o “Chasin’ The Bird”.
O Chasin’ começou algures numa já distante noite de 2007. Talvez ainda em 2006, não me recordo bem. Nasceu da junção das ideias de 6 alunos de Cinema, na UBI. Todas em função de um projecto final de curta-metragem, de grupo. Éramos nós: Aqui o anfitrião do espaço, o Humberto Rocha, o Hugo Moreira, o João Gazua, o Alexandre Banhudo e o Tiago Moreira. 6 amigos. 6 grandes amigos.
No momento em que rodámos o Chasin’, a maioria de nós já tinha alguma experiência prática em outros trabalhos de curta-metragem. Quer no “Rupofobia” ou no “Utensílios de Amor”, ambos do Telmo Martins; quer no “Horizonte”; ou até no “Isquémia”, do Hugo Tavares. Praticamente todos nós havíamos desempenhado distintos cargos e funções em cada um desses projectos cinematográficos. Semanas antes da rodagem do Chasin’ havíamos participado, também, quase todos noutro trabalho que, com certeza, recordamos com nostalgia – “Santuário”, de José Ratinho (projecto de outro grupo de grandes amigos nossos).
Acontece que quando acertámos a composição do grupo (suponho que algures entre Outubro e Dezembro de 2006), tínhamos bem presente uma fasquia, pelo menos a nível estético, do que pretendíamos atingir com o projecto a que nos proporíamos dedicar. Tínhamos, também, e principalmente, uma enorme ambição de ir mais além do ponto de vista criativo. Quebrar barreiras narrativas, linguísticas e estéticas da arte cinematográfica. Foi, assim, definido o objectivo – fazer uma verdadeira obra de arte cinematográfica. Com a plenitude dos valores intrínsecos a que tal se possam atribuir. Obviamente que, há 4 anos atrás, ainda todos éramos mais patetas do que hoje o somos. E que, com 20, 21, ou 24 anos, todos nós pensávamos que o nosso precário conhecimento cinematográfico era mais do que suficiente para nos permitir criar uma tal obra que se predispusesse a ir mais além do ponto de vista criativo. Queríamos ser autores, no sentido lato da palavra. E não podíamos estar mais redondamente enganados.
Contudo, e é com eterno orgulho que o reconheço, com “Chasin’ The Bird” conseguimos aquela que, porventura, será a nossa obra mais artística enquanto pretensos cineastas. Por mim falando, creio que nunca mais conseguirei fazer algo tão alternativo, tão intelecto (não do ponto de vista elitista, mas da perspectiva do entendimento resultante de uma interacção entre mente e espírito), tão valiosamente artístico como conseguimos em Chasin’ The Bird. Pelo bem e pelo mal que dessa afirmação resulte, ela é, aos meus olhos, absoluta.
Descrevo agora um pouco do processo.
Juntámo-nos então, munidos de ambições. De pretensões (e este aspecto é que pode ser fatal, no ponto de vista criativo). Quisemos ser grandes. Fazer algo grande. E iniciámos o brainstorming. Houve manifestações de interesse em abordar a toxicodependência. A imigração. A música. Principalmente a música – foi o nosso primeiro grande consenso. Inevitavelmente, Miles Davis (e quem éramos nós, putos de uma geração que se enfrasca em discotecas abundadas de Bobs Sinclars, para pensar sequer em abordar Miles Davis??). Sentimos. Miles Davis era o caminho. Tornou-se para nós obrigatório abordá-lo. Homenageá-lo. Todo ele é música. Uma quota parte da música é ele. Acabámos por delinear uma narrativa com um toxicodependente, amante de música. E com um imigrante de leste que vivia no quarto ao lado.
E decidimos que o filme abordaria uma questão séria – o que será mais forte: o vício ou o prazer?
Chegámos ao consenso que a via seria explorar essa questão. Ilustrar uma narrativa para estabelecer uma expressão de um paradigma aos olhos do espectador.
Carlos seria um toxicodependente ligado ao passado pela relação musical herdada do pai. Uma grafonola simbolizaria o valor material dessa relação. Um poster mítico do Miles também (o olhar de Corbjin é, por si só, um personagem de qualquer espaço), em menor escala. Um dealer forçaria Carlos a desfazer-se desse objecto que, de certa forma, seria o principal elemento da relação deste com o passado que o reconfortava. No preciso momento em que Carlos cede à ordem do Dealer (e à força do seu vício), o imigrante apareceria com um trompete. Carlos, inconscientemente, adoptaria o trompete enquanto objecto de substituição. Enquanto símbolo desse conforto perdido. Na sua cabeça, o som do trompete soava. Os acordes com que o pai o educara. Agora, ali, do outro lado da parede. O conforto voltara e Carlos rejubilava. A consciência de Miles omnipresente (também Miles fora um heroinómano). O estímulo, aos ouvidos de Carlos, seria o bater da porta. Imigrante no quarto, conforto ao alcance. Imigrante fora, desordem incontrolável. A ressaca. A ausência de conforto. O consumo, harmonia. O consumo sem estímulo (imigrante fora do quarto, ausência de música), a desordem. E, por aí, perguntar ao espectador: Será que é mais forte uma ressaca da ausência de heroína ou da ausência de música (símbolo do conforto, da motivação). Encontrámos, para dar corpo a essa questão, uma brilhante expressão numa brilhante letra dos Clã: “Será que o BEM nos faz sofrer, por nunca o vermos existir em nós?”.
Carlos sofreria essa angústia dupla, em espaço circunscrito. Uma jornada interior, pela busca de conforto. O eterno dilema.
E, ao contrário do que este formulara, o Imigrante não tocaria acorde algum no trompete. O objecto destinava-se para oferta ao filho. Para envio à terra natal. Também, para ele, o objecto possuiria um valor metafísico. Espiritual. Do sentimento de saudade pelos seus. De esperança. De crença. De alegria. De tristeza. Também, para ele, o objecto era complexo. Esse ambíguo objecto – o simples instrumento de Miles Davis.
Até aqui, tudo bem.
A coisa era mesmo brilhante. O próprio símbolo dos CTT era um cavaleiro branco a tocar trompete. O imigrante terminaria o filme a dirigir-se aos CTT. Cavalo… Trompete… Tudo fazia sentido. Relações incríveis que nós descobríamos. Sentimo-nos verdadeiros autores cinematográficos, como jamais sentiremos. Estávamos a conseguir algo mais profundo do que alguma vez imaginámos. Mas foi aqui, neste preciso momento, que pecámos. Ao querermos ir além. De encontro a essa ambição que nos movia.
Esquecemos (ou passámos para segundo plano) a componente cinematográfica da obra. Enquanto produto que formula uma comunicação entre autor e espectador. Subvalorizámos o poder do código, em função da mensagem. Desrespeitámos a técnica, a linguagem. Em função da ideia. Do brilhantismo. Da arte.
E soubemos criar algo que se debruçasse na barreira da linguística e no poder da comunicação oral (a sequência em que o Imigrante fala ao telefone com a mulher e explica a sua situação e a representação do trompete aos seus olhos, com Carlos a espreitar, ansioso, descontrolado, ressacado com a ausência do conforto, da presença do Imigrante no quarto anexo), um exercício puro sobre a causa-efeito. Sobre a incomunicabilidade dos seres humanos. O que um diz e o outro não descodifica. O efeito adverso que tal provoca. Soubemos criar uma sequência que expusesse tal problemática. Mas não soubemos nós, enquanto autores, resolvê-la. Não soubemos descodificar o código de transmissão da nossa ideia ao espectador. Não tivemos arte, nem engenho, para que a mensagem passasse. E a comunicação fosse feita. Porque, em sentido primeiro, a arte cinematográfica é, e sempre será, um meio de comunicação. E não soubemos, assim, fazer com que a nossa causa obtivesse o efeito pretendido.
Como tal, não soubemos transmitir que, quando o Imigrante pousa o telefone, Carlos regressava ao quarto e aguardaria expectante pelo som da porta a fechar. Prepararia-se convenientemente para esse momento de conforto. A junção do consumo da substância com o estímulo do início musical (accionado pelo som da porta a fechar). Abriria a janela, para o fazer à luz do dia. Procuraria o momento perfeito. A perfeita harmonia (a transmissão da mensagem pretendida talvez seja agravada pela performance do Hugo e do uso que ele dá ao “garrote”, em jeito de forca – mas, após algumas visualizações do filme por terceiros, tal pormenor seria mesmo das coisas que mais agradava no filme, e optámos por mantê-la – a coisa estava mal resolvida e mais valia ter um pormenor que suscitasse reflexão na memória do espectador!). O Imigrante entraria no quarto sem fechar a porta, pegaria as chaves de casa e sairia, fechando a porta atrás de si. O estímulo em Carlos seria accionado neste momento (quando Carlos pensaria que o Imigrante se fechara no quarto, este acabava de sair – nova problemática da causa-efeito, a barreira da incomunicabilidade entre 2 espaços distintos, 2 realidades distintas). Soaria música. Prevaleceria a harmonia, em Carlos. O Imigrante entrava nos CTT. Uma pomba branca entrava no quarto de Carlos. Um pássaro, símbolo máximo da liberdade. Carlos tentaria apanhá-la. Perseguiria a liberdade que estava ali à sua mercê. A liberdade (pássaro) fugiria, aos seus olhos. O bem de Carlos continuará a fazê-lo sofrer, por nunca o ver existir nele.
E, com o exercício, ofereceríamos ao espectador a possibilidade de reflectir na oportunidade que Carlos teve. E que nós pretendemos ilustrar, ao longo do filme. Ele teria tido a possibilidade de optar pelo prazer. Em detrimento do vício. Acreditámos que seria possível deixar essa mensagem de esperança, a quem passe pela problemática. Carlos não o conseguiu. Mas, aos nossos olhos, a libertação está ao alcance de cada um. Na dependência desse conforto, em detrimento da substância. Em calão simplista – Agarra-te à música. E livra-te da heroína.
E, pelo não domínio de toda uma linguagem cinematográfica, não conseguimos fazer com que o filme resultasse, do ponto de vista comunicativo.
Fomos brilhantes, continuo a dizê-lo. Conseguimos criar algo riquíssimo, em termos metafísicos. De valor artístico. Conseguimos criar algo muito mais profundo do que aquilo que inclusive temos noção. Mas que não comunica. Não é bem sucedido, na transmissão da mensagem. E com a mesma segurança que afirmo que jamais conseguiremos fazer algo tão profundo, tão rico do ponto de vista artístico, jamais pretenderei enveredar por uma via de recurso cinematográfico em função de um brilhantismo intelectual que não me possibilite comunicar com o público. Renegarei, a priori, qualquer criação minha que só aos meus olhos seja inteligível. Serei, sempre, e acima de tudo, um comunicador. Não posso admitir que, aos olhos da pessoa que mais contributo teve na minha educação cinematográfica, uma obra minha não seja passível de entendimento. É completamente anti-natura.
Muito por isso, por essa consciência, as minhas obras seguintes foram “Azeitona” e “Um Funeral à Chuva” (ainda que esta não tenha sido eu a realizar). Filmes complexos, à sua medida. Talvez menos intelectualizados que “Chasin’ The Bird”. Mas, certamente, mais perceptíveis. E, garanto-vos, é muito melhor sentir que tivemos um espectador emocionado, sensibilizado com a mensagem que transmitimos, do que alguém confuso, lutando consigo próprio para tentar perceber a mensagem que quisemos transmitir.
“Chasin’ The Bird” foi rodado entre Belmonte e Manteigas, creio que em Maio de 2007. Teve 5 dias de rodagem (90% passados no quarto de Carlos, que tão pouco higienicamente caracterizámos…), uma equipa de cerca de 15 pessoas e um orçamento de 600€. O Hugo Tavares, o Dmitry Bogomolov e o Luis Alçada foram irrepreensíveis, na forma como abraçaram este projecto. O Gonçalo Marques foi brilhante a personificar o ambiente do filme com as notas do seu trompete. Toda a equipa foi impecável, sensata e paciente num meio algo claustrofóbico como podem acreditar que é a desactivada pensão “Altitude”. Um enorme OBRIGADO a todos aqueles que contribuiram para o sucesso deste projecto e aos que, acima de tudo, o possibilitaram.
Lembro-me do dia em que fui com o Hugo Tavares a um Centro de Desintoxicação, na região, e da profunda conversa que tivemos com um “hóspede”. Por sinal, também ele havia cedido a guitarra que lhe havia sido oferecida pelo pai e que, de forma tão dolorosa, o remetia para os laços familiares perdidos. O seu testemunho foi importantíssimo para nós, enquanto processo criativo. O Hugo foi brilhante, nas suas qualidades de observador, a retirar todos os ínfimos pormenores que o fizessem incorporar sentimentos, expressões ou atitudes próprias de alguém consumido pelo vício da heroína. Foi algo que me marcou, enquanto criador. É importantíssimo, em cinema, utilizar os recursos possíveis do método Stanislavski. Em qualquer das fases do processo criativo. Seja na escrita, na planificação/decoupage, na representação. O bom autor é, acima de tudo, um performer. Um ilustrador. E o exímio é aquele que sabe caminhar nos terrenos que pisa.
Recordo inúmeras outras coisas, relacionadas com este projecto. Boas e más. Na sua grande maioria, dominam as positivas. E dominam com nostalgia. Hoje faria tudo igual, novamente.
O Chasin’ começou algures numa já distante noite de 2007. Talvez ainda em 2006, não me recordo bem. Nasceu da junção das ideias de 6 alunos de Cinema, na UBI. Todas em função de um projecto final de curta-metragem, de grupo. Éramos nós: Aqui o anfitrião do espaço, o Humberto Rocha, o Hugo Moreira, o João Gazua, o Alexandre Banhudo e o Tiago Moreira. 6 amigos. 6 grandes amigos.
No momento em que rodámos o Chasin’, a maioria de nós já tinha alguma experiência prática em outros trabalhos de curta-metragem. Quer no “Rupofobia” ou no “Utensílios de Amor”, ambos do Telmo Martins; quer no “Horizonte”; ou até no “Isquémia”, do Hugo Tavares. Praticamente todos nós havíamos desempenhado distintos cargos e funções em cada um desses projectos cinematográficos. Semanas antes da rodagem do Chasin’ havíamos participado, também, quase todos noutro trabalho que, com certeza, recordamos com nostalgia – “Santuário”, de José Ratinho (projecto de outro grupo de grandes amigos nossos).
Acontece que quando acertámos a composição do grupo (suponho que algures entre Outubro e Dezembro de 2006), tínhamos bem presente uma fasquia, pelo menos a nível estético, do que pretendíamos atingir com o projecto a que nos proporíamos dedicar. Tínhamos, também, e principalmente, uma enorme ambição de ir mais além do ponto de vista criativo. Quebrar barreiras narrativas, linguísticas e estéticas da arte cinematográfica. Foi, assim, definido o objectivo – fazer uma verdadeira obra de arte cinematográfica. Com a plenitude dos valores intrínsecos a que tal se possam atribuir. Obviamente que, há 4 anos atrás, ainda todos éramos mais patetas do que hoje o somos. E que, com 20, 21, ou 24 anos, todos nós pensávamos que o nosso precário conhecimento cinematográfico era mais do que suficiente para nos permitir criar uma tal obra que se predispusesse a ir mais além do ponto de vista criativo. Queríamos ser autores, no sentido lato da palavra. E não podíamos estar mais redondamente enganados.
Contudo, e é com eterno orgulho que o reconheço, com “Chasin’ The Bird” conseguimos aquela que, porventura, será a nossa obra mais artística enquanto pretensos cineastas. Por mim falando, creio que nunca mais conseguirei fazer algo tão alternativo, tão intelecto (não do ponto de vista elitista, mas da perspectiva do entendimento resultante de uma interacção entre mente e espírito), tão valiosamente artístico como conseguimos em Chasin’ The Bird. Pelo bem e pelo mal que dessa afirmação resulte, ela é, aos meus olhos, absoluta.
Descrevo agora um pouco do processo.
Juntámo-nos então, munidos de ambições. De pretensões (e este aspecto é que pode ser fatal, no ponto de vista criativo). Quisemos ser grandes. Fazer algo grande. E iniciámos o brainstorming. Houve manifestações de interesse em abordar a toxicodependência. A imigração. A música. Principalmente a música – foi o nosso primeiro grande consenso. Inevitavelmente, Miles Davis (e quem éramos nós, putos de uma geração que se enfrasca em discotecas abundadas de Bobs Sinclars, para pensar sequer em abordar Miles Davis??). Sentimos. Miles Davis era o caminho. Tornou-se para nós obrigatório abordá-lo. Homenageá-lo. Todo ele é música. Uma quota parte da música é ele. Acabámos por delinear uma narrativa com um toxicodependente, amante de música. E com um imigrante de leste que vivia no quarto ao lado.
E decidimos que o filme abordaria uma questão séria – o que será mais forte: o vício ou o prazer?
Chegámos ao consenso que a via seria explorar essa questão. Ilustrar uma narrativa para estabelecer uma expressão de um paradigma aos olhos do espectador.
Carlos seria um toxicodependente ligado ao passado pela relação musical herdada do pai. Uma grafonola simbolizaria o valor material dessa relação. Um poster mítico do Miles também (o olhar de Corbjin é, por si só, um personagem de qualquer espaço), em menor escala. Um dealer forçaria Carlos a desfazer-se desse objecto que, de certa forma, seria o principal elemento da relação deste com o passado que o reconfortava. No preciso momento em que Carlos cede à ordem do Dealer (e à força do seu vício), o imigrante apareceria com um trompete. Carlos, inconscientemente, adoptaria o trompete enquanto objecto de substituição. Enquanto símbolo desse conforto perdido. Na sua cabeça, o som do trompete soava. Os acordes com que o pai o educara. Agora, ali, do outro lado da parede. O conforto voltara e Carlos rejubilava. A consciência de Miles omnipresente (também Miles fora um heroinómano). O estímulo, aos ouvidos de Carlos, seria o bater da porta. Imigrante no quarto, conforto ao alcance. Imigrante fora, desordem incontrolável. A ressaca. A ausência de conforto. O consumo, harmonia. O consumo sem estímulo (imigrante fora do quarto, ausência de música), a desordem. E, por aí, perguntar ao espectador: Será que é mais forte uma ressaca da ausência de heroína ou da ausência de música (símbolo do conforto, da motivação). Encontrámos, para dar corpo a essa questão, uma brilhante expressão numa brilhante letra dos Clã: “Será que o BEM nos faz sofrer, por nunca o vermos existir em nós?”.
Carlos sofreria essa angústia dupla, em espaço circunscrito. Uma jornada interior, pela busca de conforto. O eterno dilema.
E, ao contrário do que este formulara, o Imigrante não tocaria acorde algum no trompete. O objecto destinava-se para oferta ao filho. Para envio à terra natal. Também, para ele, o objecto possuiria um valor metafísico. Espiritual. Do sentimento de saudade pelos seus. De esperança. De crença. De alegria. De tristeza. Também, para ele, o objecto era complexo. Esse ambíguo objecto – o simples instrumento de Miles Davis.
Até aqui, tudo bem.
A coisa era mesmo brilhante. O próprio símbolo dos CTT era um cavaleiro branco a tocar trompete. O imigrante terminaria o filme a dirigir-se aos CTT. Cavalo… Trompete… Tudo fazia sentido. Relações incríveis que nós descobríamos. Sentimo-nos verdadeiros autores cinematográficos, como jamais sentiremos. Estávamos a conseguir algo mais profundo do que alguma vez imaginámos. Mas foi aqui, neste preciso momento, que pecámos. Ao querermos ir além. De encontro a essa ambição que nos movia.
Esquecemos (ou passámos para segundo plano) a componente cinematográfica da obra. Enquanto produto que formula uma comunicação entre autor e espectador. Subvalorizámos o poder do código, em função da mensagem. Desrespeitámos a técnica, a linguagem. Em função da ideia. Do brilhantismo. Da arte.
E soubemos criar algo que se debruçasse na barreira da linguística e no poder da comunicação oral (a sequência em que o Imigrante fala ao telefone com a mulher e explica a sua situação e a representação do trompete aos seus olhos, com Carlos a espreitar, ansioso, descontrolado, ressacado com a ausência do conforto, da presença do Imigrante no quarto anexo), um exercício puro sobre a causa-efeito. Sobre a incomunicabilidade dos seres humanos. O que um diz e o outro não descodifica. O efeito adverso que tal provoca. Soubemos criar uma sequência que expusesse tal problemática. Mas não soubemos nós, enquanto autores, resolvê-la. Não soubemos descodificar o código de transmissão da nossa ideia ao espectador. Não tivemos arte, nem engenho, para que a mensagem passasse. E a comunicação fosse feita. Porque, em sentido primeiro, a arte cinematográfica é, e sempre será, um meio de comunicação. E não soubemos, assim, fazer com que a nossa causa obtivesse o efeito pretendido.
Como tal, não soubemos transmitir que, quando o Imigrante pousa o telefone, Carlos regressava ao quarto e aguardaria expectante pelo som da porta a fechar. Prepararia-se convenientemente para esse momento de conforto. A junção do consumo da substância com o estímulo do início musical (accionado pelo som da porta a fechar). Abriria a janela, para o fazer à luz do dia. Procuraria o momento perfeito. A perfeita harmonia (a transmissão da mensagem pretendida talvez seja agravada pela performance do Hugo e do uso que ele dá ao “garrote”, em jeito de forca – mas, após algumas visualizações do filme por terceiros, tal pormenor seria mesmo das coisas que mais agradava no filme, e optámos por mantê-la – a coisa estava mal resolvida e mais valia ter um pormenor que suscitasse reflexão na memória do espectador!). O Imigrante entraria no quarto sem fechar a porta, pegaria as chaves de casa e sairia, fechando a porta atrás de si. O estímulo em Carlos seria accionado neste momento (quando Carlos pensaria que o Imigrante se fechara no quarto, este acabava de sair – nova problemática da causa-efeito, a barreira da incomunicabilidade entre 2 espaços distintos, 2 realidades distintas). Soaria música. Prevaleceria a harmonia, em Carlos. O Imigrante entrava nos CTT. Uma pomba branca entrava no quarto de Carlos. Um pássaro, símbolo máximo da liberdade. Carlos tentaria apanhá-la. Perseguiria a liberdade que estava ali à sua mercê. A liberdade (pássaro) fugiria, aos seus olhos. O bem de Carlos continuará a fazê-lo sofrer, por nunca o ver existir nele.
E, com o exercício, ofereceríamos ao espectador a possibilidade de reflectir na oportunidade que Carlos teve. E que nós pretendemos ilustrar, ao longo do filme. Ele teria tido a possibilidade de optar pelo prazer. Em detrimento do vício. Acreditámos que seria possível deixar essa mensagem de esperança, a quem passe pela problemática. Carlos não o conseguiu. Mas, aos nossos olhos, a libertação está ao alcance de cada um. Na dependência desse conforto, em detrimento da substância. Em calão simplista – Agarra-te à música. E livra-te da heroína.
E, pelo não domínio de toda uma linguagem cinematográfica, não conseguimos fazer com que o filme resultasse, do ponto de vista comunicativo.
Fomos brilhantes, continuo a dizê-lo. Conseguimos criar algo riquíssimo, em termos metafísicos. De valor artístico. Conseguimos criar algo muito mais profundo do que aquilo que inclusive temos noção. Mas que não comunica. Não é bem sucedido, na transmissão da mensagem. E com a mesma segurança que afirmo que jamais conseguiremos fazer algo tão profundo, tão rico do ponto de vista artístico, jamais pretenderei enveredar por uma via de recurso cinematográfico em função de um brilhantismo intelectual que não me possibilite comunicar com o público. Renegarei, a priori, qualquer criação minha que só aos meus olhos seja inteligível. Serei, sempre, e acima de tudo, um comunicador. Não posso admitir que, aos olhos da pessoa que mais contributo teve na minha educação cinematográfica, uma obra minha não seja passível de entendimento. É completamente anti-natura.
Muito por isso, por essa consciência, as minhas obras seguintes foram “Azeitona” e “Um Funeral à Chuva” (ainda que esta não tenha sido eu a realizar). Filmes complexos, à sua medida. Talvez menos intelectualizados que “Chasin’ The Bird”. Mas, certamente, mais perceptíveis. E, garanto-vos, é muito melhor sentir que tivemos um espectador emocionado, sensibilizado com a mensagem que transmitimos, do que alguém confuso, lutando consigo próprio para tentar perceber a mensagem que quisemos transmitir.
“Chasin’ The Bird” foi rodado entre Belmonte e Manteigas, creio que em Maio de 2007. Teve 5 dias de rodagem (90% passados no quarto de Carlos, que tão pouco higienicamente caracterizámos…), uma equipa de cerca de 15 pessoas e um orçamento de 600€. O Hugo Tavares, o Dmitry Bogomolov e o Luis Alçada foram irrepreensíveis, na forma como abraçaram este projecto. O Gonçalo Marques foi brilhante a personificar o ambiente do filme com as notas do seu trompete. Toda a equipa foi impecável, sensata e paciente num meio algo claustrofóbico como podem acreditar que é a desactivada pensão “Altitude”. Um enorme OBRIGADO a todos aqueles que contribuiram para o sucesso deste projecto e aos que, acima de tudo, o possibilitaram.
Lembro-me do dia em que fui com o Hugo Tavares a um Centro de Desintoxicação, na região, e da profunda conversa que tivemos com um “hóspede”. Por sinal, também ele havia cedido a guitarra que lhe havia sido oferecida pelo pai e que, de forma tão dolorosa, o remetia para os laços familiares perdidos. O seu testemunho foi importantíssimo para nós, enquanto processo criativo. O Hugo foi brilhante, nas suas qualidades de observador, a retirar todos os ínfimos pormenores que o fizessem incorporar sentimentos, expressões ou atitudes próprias de alguém consumido pelo vício da heroína. Foi algo que me marcou, enquanto criador. É importantíssimo, em cinema, utilizar os recursos possíveis do método Stanislavski. Em qualquer das fases do processo criativo. Seja na escrita, na planificação/decoupage, na representação. O bom autor é, acima de tudo, um performer. Um ilustrador. E o exímio é aquele que sabe caminhar nos terrenos que pisa.
Recordo inúmeras outras coisas, relacionadas com este projecto. Boas e más. Na sua grande maioria, dominam as positivas. E dominam com nostalgia. Hoje faria tudo igual, novamente.
Fica para a história um filme. Este filme.
Talvez, para mim, o maior contributo artístico das nossas vidas.
Nenhum outro trabalho me orgulhará nem decepcionará tanto como este. Porque é brilhante e incapaz. Por isso, gigante e inútil enquanto obra fílmica. Porque com a pretensão vem o egoísmo criativo, intelectual. E o esquecimento de que o fundamental é saber comunicar, com recursos a imagens e sons.
Sem dúvida, para nós, uma lição.
Uma enorme lição de cinema.
Que, aqui no Royal Cafe, vos tardia e reflectidamente confesso.
E que, ao reconhecê-la, mais me confronto com o panorama geral da produção cinematográfica portuguesa. Um panorama de egoísmo criativo, de incapacidade comunicativa consciente ou de facilitismo exasperado. Que precisa, cada vez mais, de encontrar um meio termo. Um meio termo que o promova. Que o aproxime do receptor. E que, acima de tudo, o glorifique na sua função primária – a comunicativa. Porque a Arte só existe se transmitida.
Deixo-vos também os vídeos do Making Of do Chasin The Bird, da autoria do génio de Leandro Silva.
Esta pequena pérola (o primeiro vídeo), por ele captada em plena rodagem, é o verdadeiro exemplo de como deve ser um Making Of – Um Filme dentro do Filme, A Tugalidade dentro de um Filme Tuga:
Filme, A Tugalidade dentro de um Filme Tuga:
Sem dúvida, para nós, uma lição.
Uma enorme lição de cinema.
Que, aqui no Royal Cafe, vos tardia e reflectidamente confesso.
E que, ao reconhecê-la, mais me confronto com o panorama geral da produção cinematográfica portuguesa. Um panorama de egoísmo criativo, de incapacidade comunicativa consciente ou de facilitismo exasperado. Que precisa, cada vez mais, de encontrar um meio termo. Um meio termo que o promova. Que o aproxime do receptor. E que, acima de tudo, o glorifique na sua função primária – a comunicativa. Porque a Arte só existe se transmitida.
Deixo-vos também os vídeos do Making Of do Chasin The Bird, da autoria do génio de Leandro Silva.
Esta pequena pérola (o primeiro vídeo), por ele captada em plena rodagem, é o verdadeiro exemplo de como deve ser um Making Of – Um Filme dentro do Filme, A Tugalidade dentro de um Filme Tuga:
Filme, A Tugalidade dentro de um Filme Tuga:
Havia outro, que entretanto foi removido pelo Youtube… Parece que não havia direitos para o uso da música… Ainda que se tratasse apenas de um Making Of de uma curta de estudantes…
Volto em breve,
Entretanto há uma estreia nacional de “Um Funeral à Chuva”. 3 de Junho, num cinema perto de si!
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