terça-feira, maio 26, 2009

«os blogues são hoje afins»_Pacheco Pereira


Quem acompanhe a comunicação social (incluindo os blogues) com detalhe, e conheça os procedimentos habituais do Parlamento Europeu, pode notar alguns factos que não são propriamente bizarros, mas que também estão longe de poderem ser percebidos com inteira clareza por quem os lê e vê. Blogues tradicionalmente muito críticos dos procedimentos europeus têm trazido descrições de um modo geral simpáticas, quando não apenas wishy-washy, da instituição. Um numeroso grupo de autores de blogues foi convidado a ir ao Parlamento Europeu a expensas de deputados (mais do que um) no fim do mandato. Artigos com referências simpáticas ao trabalho de alguns deputados, os convidantes, assim como extensas entrevistas de personagens há muito desaparecidas da vida política portuguesa, mas que estão há anos num nicho qualquer europeu, aparecem também na imprensa com um destaque que nada justifica. Em todos os casos, por detrás destas publicações, opiniões, artigos, entrevistas está o programa do Parlamento Europeu que permite aos deputados convidarem jornalistas e afins (os blogues são hoje afins) para "conhecerem o Parlamento". Na verdade, não há nenhuma diferença entre esse programa e as actividades propagandísticas das instituições comunitárias que levaram, por exemplo, à colocação de cartazes que interferem com a campanha eleitoral em Portugal, defendendo posições políticas determinadas sobre a Europa, que funcionam como uma pressão a favor de uma determinada ideia "europeísta".

Todo este dinheiro atirado para cima de "acções de esclarecimento" nada tem de inocente. Contribui e muito para reforçar um falso debate, viciado à partida por ter um só lado. E um meio comunicacional já muito dependente de um aparente "consenso" europeu, que aliás reflecte o "consenso" político, ainda se torna mais pobre quando é manipulado por estas actividades.

Na verdade, elas não são muito diferentes nos seus resultados, nas suas técnicas de "massagem do ego", da história exemplar do convite chinês a um crítico culinário de um importante jornal americano, conhecido por ser um crítico feroz do regime comunista.Convidado, os chineses não lhe disseram uma palavra de política, mas passearam-no pelos melhores restaurantes da China, deram-lhe a provar as melhores iguarias. De regresso, os artigos foram uma descrição maravilhada da culinária chinesa e nem uma linha sobre o regime. Não se trata de venalidade, mas de manipulação, e da moleza que vem da proximidade, do contacto, do grupismo, e, no fundo, da vaidade de se ter sido convidado e da vontade de responder à amabilidade do convidante. É um contrato invisível, mas é um contrato.

A razão por que refiro isto é que contribui e muito para a abafamento quase total, mesmo em período de eleições europeias, de qualquer alteridade na discussão, o atirar para debaixo de um grande tapete de tudo o que permita uma perspectiva crítica do caminho que se tem seguido na União Europeia na última década. Tudo começou na presidência portuguesa de Guterres, teve como tiro de partida o célebre discurso de Joschka Fischer, seguido do delírio constituinte, do fracasso dos referendos, do processo de fazer passar a Constituição disfarçada de Tratado de Lisboa, seguida de uma fuga escabrosa dos compromissos referendários e do voto contra irlandês. O caminho seguido pelos dirigentes europeus, com destaque para personagens como Chirac, Valéry Giscard d'Estaing, Tony Blair, Merkel, e Sarkozy entre outros, tem sido o de andar de desastre em desastre. Este caminho há muito erodiu todos os fundamentos do antigo espírito comunitário que fundou a Europa. O gigantesco consenso institucional - todos os partidos, todas as Igrejas, todas as "forças vivas" - está longe de corresponder à vontade popular, numa Europa cada vez menos democrática e que já funciona em regime de directório.

Para um país como Portugal esta evolução é péssima, para não dizer trágica. Portugal precisava de uma Europa de coesão, que valorizasse os factores de um crescimento equilibrado, e em que Portugal estivesse como parceiro virtualmente igual com os mais fortes e os mais ricos. Foi assim que Monnet fundou a Europa muito prudente no seu upgrade político, assente nos "pequenos passos" dos fundadores. Portugal precisava de uma Comissão forte, um Parlamento fraco e um Conselho que respeitasse a Comissão. No desvario dos últimos anos, saiu-lhe uma Comissão cada vez mais fraca, um Parlamento cada vez mais forte e um Conselho transformado num directório com potências de primeira e de segunda. Tudo o resto na arquitectura europeia veio por consequência, originando um país mais fraco no seu poder europeu, marginalizado de qualquer decisão, fragilizado na soberania em questões cruciais como o mar territorial, e degradado na sua democracia pelo nulo poder do seu Parlamento e pela traição à promessa referendária.

Era isto que devia ser discutido e não é. E se quem parecia ter alguma independência para esta alteridade solitária se deixa com toda a facilidade enredar nas malhas do "consenso", ainda ficamos pior. Não será do PS, nem do PSD, nem do CDS-PP (que abandonou totalmente qualquer veleidade de ter um pensamento europeu próprio), não será do BE, nem do PCP que virá essa tão necessária alteridade. Para estes dois últimos partidos, a discussão da Europa é subsidiária da crítica ao capitalismo, logo tudo se aceita na Europa desde que pareça ir no sentido dessa crítica.

Falta por isso debate e muito. Debate interno, interior, dentro das baias da aceitação do "europeísmo" dominante, pouco me interessa. Debate que tenha a coragem de vir de fora, que diga as verdades que precisam de ser ditas sobre uma Europa que caminha a passos largos para destruir o adquirido comunitário a favor de uma realidade meramente geopolítica sem cabeça para um tronco grande de mais, isso é bem-vindo e faz falta.

(Versão do Público de 24 de Maio de 2009.)
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