terça-feira, junho 01, 2010

Funeral à Chuva é «..uma lufada de ar fresco» OPINIÃO: Lauro António


Surgiu no cinema português um meteoro a que vale a pena dedicar atenção. Trata-se de um filme de todo em todo invulgar. Quem iria imaginar ver surgir a produção de uma longa-metragem de ficção numa cidade como a Covilhã? A interioridade não costuma dar destas coisas, ainda que a Selecção Nacional lá esteja a estagiar com vista ao Mundial da África do Sul. Mas “Um Funeral à Chuva” é decididamente outra coisa. É claro que o facto de existir na Universidade da Covilhã, de há uns anos a esta parte, um curso de cinema deve ajudar a compreender o fenómeno, tanto mais que o realizador, Telmo Martins, é um ex-aluno dessa Universidade da Beira Interior. Mas, mesmo assim, o aparecimento deste filme é um fenómeno novo

. Acrescente-se que surge igualmente à margem de todos os subsídios oficiais e resulta da conjugação de esforços individuais e de boas vontades. É uma produção de pequeno orçamento, mas consegue ultrapassar esses riscos pela honestidade e sinceridade de propósitos.

Estamos já fartos de filmes, ditos “comerciais”, que não passam de operações financeiras montadas à custa do cidadão e dos seus impostos e que se destinam apenas “realizar capital”. De modo fácil. Estilo casa de passe. Normalmente nem isso conseguem e nunca ultrapassam a vergonhosa situação de um oportunismo indigente, explorando sexo e violência, actores conhecidos e vedetas de televisão ou outras que aceitam despir-se ou voltearem para a multidão.

“Um Funeral à Chuva” quer ser um filme de apetência popular, quer ser visto, mas não abdica nem da dignidade, nem da honestidade, nem da sinceridade. É feito por jovens que querem falar das suas vidas, dos seus problemas, das suas dúvidas, das hesitações, das alegrias e das tristezas, das frustrações e dos sonhos não realizados, das reuniões pela noite dentro, dos copos e dos fuminhos que instilam uma boa disposição artificial e passageira que, todavia, lhes permite encarar o futuro com alguma certeza, ou sem certeza nenhuma, é mais o caso, mas com alegria de viver. È tudo muito complexo, já se sabe, os caminhos nem sempre serão os mais correctos, nem tudo se faz como aconselha o senso comum, mas é assim na vida e também no cinema.

“Um Funeral à Chuva” não é um filme perfeito, longe disso, tem asperezas e fragilidades, mas é uma obra a que vale a pena dedicar tempo e atenção. Funciona um pouco como um “Amigos de Alex” à portuguesa e 50 anos depois. A estrutura assemelha-se, mas as conclusões são diferentes. Sete amigos reúnem-se na Covilhã para enterrar um antigo colega de universidade que morreu precocemente. Alguns deles não se viam há dez anos. A reunião serve para relembrar o amigo, para relançar os afectos, para estreitar os laços entre a comunidade. Serve também para, perante a morte, assumir a vida e a sua verdade. Aceitando frustrações e recusando mentiras.

O filme começa por apresentar as personagens, um escritor de viagens, uma cara da televisão, daquelas que ocupa as madrugadas a entreter os espectadores com aldrabices de concursos infindáveis, dois empregados de um videoclube, uma engenheira, um músico, um professor universitário. As apresentações são sincopadas, deliberadamente desligadas, seguem-se os percursos até à Covilhã, a noitada de convívio, um velório pouco ortodoxo (que julgo muito extenso e repetitivo, com cada um dos amigos a falar em privado com o morto, tornado quase totalmente redundante este episódio) e finalmente o enterro numa das faldas da serra.

Todo o filme assenta nas capacidades técnicas dos artífices (realização escorreita, boa fotografia, de Pedro Azevedo, densa e impressiva, boa montagem, som não muito brilhante, pelo menos na noite da ante-estreia, muito estridente e gritado) mas, sobretudo, na representação. E o elenco é bom, na sua globalidade, mesmo muito bom nalguns casos. Alexandre Silva, Pedro Gorgia, Luís Dias, Sandra Santos são boas apostas, mas também Hugo Tavares, Pedro Diogo, João Ventura, Sílvia Almeida, e as consagradas Adelaide João e Célia Silva.

De Telmo Martins, o realizador e antigo estudante da UBI, nada conhecíamos, apesar de algumas curtas-metragens suas anteriores terem sido bem recebidas nalguns festivais, nomeadamente “Crosswalk”, que sobressaiu no concurso mundial do portal canadiano “iStockphoto” e premiada igualmente no Festival de Tróia, em 2007.

Esta é uma produção da Lobby Productions, sediada na Covilhã, que merece incondicionalmente a atenção do espectador português. Este é um retrato de uma boa parte da juventude portuguesa neste início do século XXI, retrato que será de todo o interesse questionar, discutir, polemizar, mas não ignorar. No mínimo, é uma lufada de ar fresco na panorama cinematográfico nacional que, a calcular pelas reacções da sala cheia do São Jorge, na noite da ante-estreia, pode vir a ser um caso muito sério de adesão de público. Assim tenha tempo para o “passa palavra”, depois do dia da estreia.


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