A Benoli é a única fábrica de confecções que ainda existe na vila do Tortosendo. Manuel Oliveira fundou-a com a mulher, Benvinda, em Maio de 1974, no meio das greves e manifestações. A última de uma série de reportagens sobre figuras cujo habitat só podia ser a serra.
Manuel Oliveira entra na loja de pronto-a-vestir na Avenida Viriato, no Tortosendo. "Tem papillons?" A empregada vai buscar uma caixa com lacinhos pretos. "São estes que os noivos costumam comprar para os casamentos", diz ela. Oliveira não está muito convencido. "Não tem outros?" A empregada elogia os papillons o melhor que sabe. A loja é de uma prima e ela está ali a trabalhar provisoriamente. Normalmente, está em casa, tal como a filha, de 35 anos. Esforça-se por vender um papillon e por agradar a Oliveira.
"Não há lá na fábrica um lugar para a minha filha? Ela já se inscreveu. Chama-se Catarina."
"Vou ver." Oliveira compra um laço e sai, em direcção à fábrica Benoli, umas centenas de metros à frente, na mesma avenida, na direcção da Covilhã.
A filha da empregada da loja trabalhou na fábrica Gil e Almeida, que fechou, tal como todas as outras na vila, excepto a Benoli. E antes já tinha sido operária numa outra. Agora tem pouca esperança. "Ela tem um pequeno defeito", explica a mãe. "Não é deficiente, mas as pessoas olham para ela e pensam que não pode trabalhar. É estrábica, e para não ver duas imagens, conforme nos explicou o médico, inclina a cara assim para o lado. Por isso foi entortando a coluna, e agora anda assim, torta. Mas trabalhou lá na fábrica do José Gil, e montava sozinha, na secção de termocolagem, as peças que lhe iam sendo entregues por três operárias."
Manuel Oliveira, 68 anos, tem o Mercedes estacionado à porta da Benoli, preparado para se dirigir ao aeroporto de Lisboa. Manuel e a mulher, Benvinda, 65 anos, vão passar o Ano Novo ao estrangeiro. A fábrica, entretanto, está a laborar em pleno.
O ruído das máquinas de costura mistura-se com a música da Rádio Renascença, que ecoa nos altifalantes dos vários pavilhões. Lá fora chove e faz frio, mas dentro da fábrica a temperatura é alta, permitindo às operárias trabalharem de manga curta. São mais de cem trabalhadoras, divididas entre os sectores de corte e de costura. Neste momento, está a ser confeccionado um casado de mulher para ser entregue na Massimo Dutti. Cerca de 80 por cento das encomendas da Benoli provêm desta marca. O resto é, na sua maioria, do El Corte Inglés. "Estes clientes estrangeiros pagam a horas", diz Manuel. "Os portugueses, em 90 por cento dos casos, não pagam."
Na secção de corte, os planos produzidos em computador entram nas máquinas de lâmina de laser. Uma operária acerta o material para ser recortado, em várias peças da entretela que irá dar consistência ao casaco. Estas peças e as de tecido, do exterior e do forro, são transferidas para a secção das máquinas de costura, passando de mão em mão, até o casaco ficar completo. Cada operária cose uma parcela do casaco, num trabalho preciso e repetitivo. Quase todas ganham o salário mínimo e trabalham a tempo inteiro. Mas vê-se que estão ali com satisfação. A maioria das trabalhadoras da sua especialidade está no desemprego.
O casaco bege, aparentemente de linho (na realidade, os materiais são viscose e acetato), segue depois para os acabamentos, que incluem a prensagem que lhes dá forma. Máquinas que possuem secções côncavas e convexas com formas do corpo feminino comprimem as várias partes do casaco, com a ajuda de vapor, produzido em caldeiras que trabalham do lado de fora da fábrica. Primeiro entra a cintura, depois o peito, a seguir os ombros e os braços. A gola é aperfeiçoada no termo desta fase. "Um casaco de senhora requer muita atenção", explica Manuel.
O blazer, agora moldado, chega à operária que lhe prega os botões, a uma velocidade incrível, com a ajuda de uma máquina. Por fim, os exemplares vão sendo observados e retocados, um a um, antes de serem embalados num fino saco de plástico.
Por dia, são fabricados aqui entre 300 e 400 casacos, que Manuel Oliveira manda a seguir entregar em Cáceres, Espanha, de onde a marca os distribuirá pelos vários mercados. "O segredo desta fábrica é a qualidade", diz Manuel. "Outras fecharam porque não a tinham. Nós podemos trabalhar para prestigiadas marcas mundiais." A Benoli especializou-se em vestuário exterior feminino. Neste momento, só fabrica casacos, peça que exige mais sofisticação. As encomendas de saias e calças transfere-as para outras fábricas, cujos serviços contrata. "Dessa forma temos ajudado outras unidades industriais, que de outro modo também já teriam fechado", diz Manuel.
A quase totalidade das trabalhadoras da Benoli já foi empregada noutras fábricas de confecção do Tortosendo ou arredores. Como quase todas essas fábricas fecharam, Manuel Oliveira conta com um vasto exército de trabalhadores, dos quais pode escolher os melhores. Alguns frequentaram o Centro de Formação Profissional da Indústria de Vestuário e Confecção da Covilhã. Outros receberam formação aqui mesmo, ministrada pela mulher de Manuel, Benvinda Oliveira. "Ela é que é o cérebro de tudo isto", admite o marido, orgulhoso, mas sem no entanto permitir que o repórter fale com Benvinda.
A burguesia da serra
Usando como matéria-prima a lã das ovelhas da serra, o Tortosendo tornou-se desde há muito um centro de tecelagem, como acontecia com outras aldeias da região. Em 1927, quando a povoação foi elevada à categoria de vila, introduziu-se o abastecimento de energia eléctrica. Pouco depois, os muitos teares manuais foram transformados em eléctricos, e nasceu uma próspera indústria, que não parou de crescer, até ao final dos anos 50 do século XX. Em 1955, havia no Tortosendo mais de 500 teares.
Desta indústria nasceu uma classe alta local, uma elite desmesuradamente rica para os padrões da região, detentora de um estilo de vida de ostentação e glamour com que a maioria da população não podia sequer sonhar. Uma burguesia da serra que construía palacetes nos mais belos locais e cujos filhos conduziam carros desportivos. Muitos desses empresários exportavam para as colónias africanas, onde também abriram negócios e para onde viajavam frequentemente.
Esse jet-set dos anos 50 no Tortosendo foi decaindo nas décadas seguintes e desapareceu completamente no 25 de Abril de 1974. Os operários da vila sempre tinham sido explorados por estes patrões novos-ricos, sem qualquer sensibilidade social. As suas condições de vida eram degradantes, e a contestação surda, enquadrada pelo Partido Comunista, explodiu com violência após a revolução. Alguns patrões foram expulsos, outros sequestrados no interior das próprias fábricas. Quase todas as grandes indústrias fecharam, e as que tentaram mais tarde recompor-se não aguentaram a concorrência dos mercados internacionais. Já não era possível trabalhar com os métodos e a cultura de antigamente. O Tortosendo que conheciam tinha desaparecido.
O segredo de Benvinda
A jovem Benvinda era modista. Trabalhava em casa, fazendo roupa de senhora para particulares e para empresas. Foi aumentando a "empresa", e chegou a ter sete ajudantes. Casou com Manuel, que era empregado de escritório, e ambos decidiram montar uma fábrica, em pleno tumulto revolucionário, entre as greves e as empresas que encerravam, em Maio de 1974. Em pouco tempo, as sete trabalhadoras passaram a 50. A fábrica chamou-se Benoli, designação que usa as primeiras letras dos nomes Benvinda e Oliveira.
O produto continuou a ser roupa de senhora, tal como Benvinda a confeccionava. E é a qualidade desta confecção que está na origem do êxito da empresa, até hoje, segundo Manuel. Ela desenhava os seus modelos, que vendia para várias lojas, e também para empresas grandes, como a Sociedade de Fabricantes, que viria a fechar, como as outras. Benvinda e Manuel chegaram a ter várias lojas próprias. Hoje têm apenas uma, no centro comercial Serra Shopping, na Covilhã. Quando tiveram oportunidade adquiriram as instalações de uma fábrica grande, que falira. A Benoli tem hoje 105 operárias, quatro das quais pertenceram ao pequeno grupo de sete com quem Benvinda trabalhava em casa.Usa matéria-prima comprada no estrangeiro, porque nenhuma fábrica portuguesa produz já os tecidos de que necessita. Em toda a vila do Tortosendo, já não há mais nenhuma fábrica de confecções nem de lanifícios. Todas fecharam, algumas com dramáticas convulsões sociais, nos últimos anos. Em 2001 foi inaugurado nos arredores um Parque Industrial do Tortosendo, com 365 metros quadrados, preparado para albergar 92 empresas e dar emprego a duas mil pessoas. Mas quase nenhum desses novos postos de trabalho coube aos operários do Tortosendo, despedidos das fábricas têxteis.
Esses parecem condenados, como a própria vila. "Dizem que é uma vila, mas isto é na verdade uma aldeia grande", diz a empregada da loja de confecções. "Não há nada aqui. Não há trabalho, as próprias casas estão a fechar, porque as pessoas estão a emigrar de novo, para França, para a Suíça. Se isto é uma vila, é uma vila-fantasma."
Segundo a lenda, o nome Tortosendo deve-se a uma rapariga pobre e aleijada a quem um dia apareceu a Virgem, que lhe disse: "Minha filha, não estejas triste e pega nesta roca, com que passarás os teus dias a fiar. Embora doentinha e torta sendo, contribuirás assim para o bem-estar da tua família." Torta-sendo baptizou a povoação e a roca marcou o início da sua prosperidade, com a indústria têxtil.
Quando Manuel saía da loja a empregada ainda lhe disse: "Lembre-se lá da milha filha. Chama-se Catarina. É uma boa trabalhadora."
PUBLICO
3 comentários:
já ouviram falar numa empresa chamada TORVES ?
se não... adianto que fica em Tortosendo. lol
E já ovviram falar numa empresa de confeç~ioes chamada C2F? Pois também fica no Tortosendo...
Felizmente, a este caso, juntam-se a Zendel em confeção a poucos metros.
E FITECOM já ouviram falar? também é no tortosendo...
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