quarta-feira, dezembro 08, 2010

"Para entender porque o WikiLeaks cheira mal: a diferença que faz o ontem e o agora"

Tem sido um frenesim dos antigos. Já não via um ataque assim à Imprensa e ao jornalismo, por parte das Pessoas Antes Conhecidas Por Leitores (PACPL), desde o tempo em que se reclamava que os blogs eram o fim dos jornais e os bloggers iam substituir -- com evidentes vantagens -- os jornalistas. Isto foi em 2003 e ainda estou à espera. (De caminho, os sites dos jornais quintuplicaram as audiências, o grosso dos blogs teve crescimento quase proporcionalmente inverso e a maioria dos que ficaram luta para ver quem mais cita os jornais, plantando um linkezito nos twingles -- enfim, detalhes sem importância alguma, naturalmente.)

Agora, é o WikiLeaks que vem substituir "os jornais" e Julian Assange tornou-se, de uma semana para a outra, no substituto de Gutenberg, Marconi, Baird -- ei, incluam McLuhan nisso! -- e as PACPL, dizendo-se amarfanhadas e espezinhadas por um jornalismo que consideram decrépito e ultrapassado, aderem, cantando vivas e trucidando de passagem as vozes que critiquem Sua Enormíssima Majestade, O Rei Da Liberdade De Expressão.

Eu não tenho dado para este peditório. Estou um pouco cansado destas flames escaldantes que perpassam a cultura reticular. Não que as não siga: sigo, porque elas mudam o rumo do futuro. Só não tenho dado mais do que a conta: escrevi duas vezes sobre o WikiLeaks, a primeira a 24 de Outubro, a segunda no domingo passado.

Respigo de Wikileaks, o aliado, publicado em Outubro a propósito da fuga de informação conhecida por War Logs: "O Wikileaks trouxe uma reviravolta ao jornalismo, restituindo-lhe parte dos comportamentos insubmissos que ajudaram a criar a fama de um guardião da democracia".

No domingo intitulei a crónica para o Correio da Manhã de O inimigo público. Aperitivo: "o povo exulta. Se não têm cuidado, os governos ainda elevam Assange à categoria de herói global". Está feito -- só pequei por achar que iam demorar mais uma semana, mas foram rápidos.

A DIFERENÇA
Mas decidi dar mais dois cêntimos para o tema da semana.

Os War Logs foram, e são, de aplaudir. A informação tornada pública permitiu saber o que tinham feito alguns governos durante uma guerra, que medidas tinham decretado e que políticas tinham seguido para travar essa guerra. Isto permitiu um julgamento desses políticos e desses governos. Tratando-se, para mais, de um conflito de proporções mundiais, a informação tinha interesse público -- e muito.

A roupa suja das embaixadas é um caso diferente. A informação publicada não é do mesmo calibre. Em primeiro lugar, porque nada ali era realmente novo: confirmou-se o que, de uma maneira ou de outra, tinha já sido notícia. Se alguma novidade a segunda remessa de documentos trouxe, foi a dimensão de copy+pasters dos jornais a que foi remetida parte substancial dos funcionários das embaixadas.

Mas -- e aqui é que está o detalhe que faz toda a diferença -- a informação é "viva", não é passado recente, como no caso dos War Logs. Estamos a ler em tempo quase real o que uns dizem dos outros -- tal e qual os programas tipo Casa dos Segredos. Quem vai ser expulso a seguir?

Nesse sentido, a sua publicação afeta o exercício da governação de uma forma determinante. Permite um julgamento instantâneo, extemporâneo e parcial, logo necessariamente injusto. Uma aberração -- não surpreende, pois, a reação extrema do governo estado-unidense, tão extrema que corre o risco de acelerar o processo de multiplicação dos clones do WikiLeaks.

Essa diferença é, para mim, enquanto PACPL, determinante para classificar a segunda remessa como tabloidismo -- algo que cativa o olhar imediato mas não tem substrato informativo, tal como a garota da página 3.

Mas, ao contrário da garota da página 3, este é um tabloidismo perigoso para a sociedade. Basta, aliás, ver como os mais assanhados defensores do WikiLeaks são pseudo-anarquistas, ou da extrema-direita neo-liberal que quer estoirar com os atuais Estados e abrir a porta ao anarco-capitalismo, ou da extrema-esquerda que julga que pode destruir o capitalismo, para perceber que estão a aplaudir o efeito das fugas no sistema e não a liberdade de expressão ou a "transparência" governativa.

Nunca é demais repetir que a liberdade implica responsabilidade -- um anarquista aprende a dureza e a importância da frase com o passar dos anos, e anos a passar não me faltam...

Este WikiLeaks "stinks", cheira mal, porque há uma diferença entre o ontem e o agora. O ontem permite o julgamento sereno. Civilizado. Obrigado, Assange. O agora implica a gestão da informação, sendo que os silêncios e as esquivas são informação também. Mais valia teres ficado quieto, ó Julian.

No final, o episódio da semana tem mais, muito mais a ver com a forma como faremos doravante a política do que com o jornalismo ou a opinião da turba. Era bom por esta altura reler os autores de ficção científica do século passado sobre os cenários da democracia instantânea, das decisões tomadas hora a hora por políticos nominais, encarregues da contagem do voto eletrónico imediato. Porque é de um futuro parecido que estamos a ter um vislumbre neste momento.

Um futuro melhor? Pior? Ei, eu sou só um repórter. Agora você, PACPL, tem certamente uma certeza sobre isso. Faça favor.



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